«Liberté! Sauvons la liberté! La liberté sauvera le reste!» Victor Hugo.

14/11/2007

Do absolutismo da idéia ao da ação

Nossa opinião sobre as causas profundas que originaram a atual catástrofe mundial, não seria exata se se deixasse de lado o papel que o socialismo contemporâneo e o moderno movimento operário desempenharam na preparação da tragédia da cultura que hoje em dia se processa. Neste aspecto, têm especial importância as tendências intelectuais do movimento socialista na Alemanha, já que, durante séculos, exerceram uma influência considerável sobre os partidos socialistas da Europa e da América.

O socialismo moderno é, no fundo, apenas a continuação natural das grandes correntes liberais dos séculos XVII e XVIII. Foi o liberalismo que desfechou o primeiro golpe mortal no sistema absolutista dos príncipes, abrindo, ao mesmo tempo, novos caminhos para a vida social. Seus representantes intelectuais, que viram na máxima liberdade pessoal a alavanca de toda reforma cultural, reduzindo a atividade do Estado aos mais estreitos limites, abriram perspectivas completamente novas quanto ao desenvolvimento futuro da humanidade: desenvolvimento que, forçosamente, teria levado à superação de toda tendência absolutista, assim como a uma organização racional na administração dos bens sociais, se suas concepções sobre a economia tivessem avançado ao mesmo passo que o seu conhecimento do campo político e do social. Mas, desgraçadamente, isso não se deu.

Sob a influência, cada vez mais acentuada, da monopolização de todas as riquezas, tanto das naturais como das criadas pelo trabalho social, desenvolveu-se um novo sistema de servidão econômica. Este sistema exerceu um influxo cada vez mais funesto sobre todas as aspirações primitivas do liberalismo e sobre os princípios autênticos da democracia política e social, conduzindo, por lógica interna, para esse novo absolutismo que encontrou, hoje, uma expressão tão perfeita como vergonhosa na estrutura do Estado totalitário.

O movimento socialista poderia ter oposto um dique a esse desenvolvimento, mas a realidade é que a maioria de seus representantes deixou-se arrastar pelo turbilhão desse processo, cujas conseqüências destrutivas se manifestaram na catástrofe geral da cultura que hoje contemplamos. O movimento socialista poderia ter-se convertido no executor testamentário do pensamento liberal ao oferecer a este uma base positiva na luta contra o monopólio econômico, no afã de que a produção social chegasse a satisfazer às necessidades de todos os homens. Constituindo assim o complemento econômico das correntes de idéias, políticas e sociais do liberalismo, ter-se-ia convertido num elemento poderoso na consciência dos homens, e em veículo da nova cultura social na vida dos povos. Realmente, homens como Godwin, Owen, Thompson, Proudhon, Pi y Margall, Pisacane, Bakunine, Guillaume, De Pape, Reclus e, mais tarde, Kropotkin, Malatesta e outros, conceberam o socialismo neste sentido. Contudo, a grande maioria dos socialistas, com incrível cegueira, combateram essas idéias de liberdade baseadas na concepção liberal da sociedade, considerando-as apenas como derivado político da chamada Escola de Manchester.

Deste modo sistematicamente se reviveu e se fortaleceu a crença na onipotência do Estado, crença que já tinha recebido um golpe sensível com a aparição das idéias liberais dos séculos XVIII e XIX. É um fato significativo terem os representantes do socialismo, na luta contra o liberalismo, tomado emprestado suas armas, amiúde, do arsenal do absolutismo, sem que a maioria sequer percebesse o mal deste fenômeno. Muitos, e especialmente os representantes da escola alemã, a qual, mais tarde, veio a obter uma influência predominante sobre todo o movimento socialista, eram discípulos de Hegel, Fichte e outros representantes da idéia absolutista do Estado. Outros sofreram uma influência tão poderosa do jacobinismo francês, que só podiam conceber a transição ao socialismo sob a forma de ditadura. Outros, ainda, acreditaram numa teocracia social, ou numa espécie de “Napoleão socialista”, que traria a salvação do mundo.

Contudo, a pior superstição foi a concepção da “missão histórica do proletariado” que, segundo Marx, tinha de se converter, fatalmente, no “coveiro da burguesia”. A palavra classe não constitui, no melhor dos casos, senão um conceito de classificação social; conceito que pode não ser válido em determinadas circunstâncias, mas nem Marx nem ninguém, foi capaz, até hoje, de traçar um limite fixo a esse conceito, dando-lhe uma definição exata. Sucede com as classes o mesmo que sucede com as raças; nunca se sabe onde termina uma e começa outra. Existem no chamado proletariado tantas gradações sociais como as que existem dentro da burguesia ou dentro de outra qualquer camada do povo. Mas o maior erro consiste em atribuir a determinada classe certas tarefas históricas e convertê-la em representante de certas correntes ideológicas. Se se pudesse demonstrar que os homens nascidos e educados, sob certas condições econômicas se distinguiam essencialmente, quanto a seus pensamentos e atos, dos outros grupos sociais, então nem sequer seria necessário ocupar-nos disto, já que, ante fatos evidentes, cabe-nos apenas a resignação. Mas aí, precisamente, nos encontramos com o ponto crucial. O pertencer a uma camada determinada da sociedade não oferece nem a menor garantia quanto ao pensamento e à atuação dos homens. O mero fato de que quase todos os grandes vanguardistas da idéia socialista tenham saído não do proletariado mas das chamadas classes dominantes, deveria dar-nos que pensar. Entre eles se encontram aristocratas, como Saint-Simon, Bakunine, Kropotkin; oficiais do exército, como Considérant, Pisacane e Lavroff; comerciantes, como Fourier; fabricantes, como Owen e Engels; sacerdotes, como Moslier e Lamenais; homens de ciência, como Wallace e Dühring, assim como intelectuais de todos os matizes, tais como Blanc, Cabet, Godwin, Marx, Lassalle, Garrido, Pi y Margall, Hess e centenas de outros.

Que se consolem os adeptos da teoria da “missão histórica do proletariado” com a idéia de que o fascismo é apenas um movimento da classe média! Mas essa concepção não altera o fato de terem saído do proletariado os quase catorze milhões de votantes que, na Alemanha, deram seu voto a favor de Hitler. Precisamente num país como a Alemanha em que o ensino marxista tinha encontrado tanta difusão, aquele fato tem dupla importância. Se é certo que os representantes intelectuais do antigo absolutismo, isto é, os Hobbes, Maquiavéis, os Bossuet, etc., pertenceram às camadas superiores, enquanto os representantes do absolutismo moderno, ou sejam os Mussolini, Stalin e Hitler, provêm das camadas mais baixas, essa circunstância nos demonstra precisamente que nem as idéias revolucionárias nem as reacionárias se acham ligadas a um determinado grupo social.

Os partidários do determinismo econômico e da teoria da “missão histórica do proletariado” afirmam, não há dúvida, que, em seu caso, não se trata de uma concepção ordinária, mas da necessidade interna de um processo natural, que se desenvolve independentemente da volição humana; mas é precisamente este ponto que se deve provar previamente. A própria concepção marxista é apenas uma especulação, uma crença, como qualquer outra, em que o desejo é o pai da idéia. A crença num desenvolvimento mecânico de todo suceder histórico sobre a base de um processo inevitável, que tem seu fundamento na natureza das coisas, é o que mais prejuízo tem causado ao socialismo, pois destrói todas as premissas éticas, imprescindíveis para a idéia socialista. O absolutismo da idéia conduz, em certas circunstâncias históricas, a um absolutismo da ação. A história atual ilustra este fato com os mais impressionantes exemplos.

# As idéias absolutistas no socialismo, Rudolf Rocker.