«Liberté! Sauvons la liberté! La liberté sauvera le reste!» Victor Hugo.

13/12/2007

O Dogma dos Nossos Tempos

Este ensaio foi publicado pela primeira vez em The Freeman (Junho de 1956), sendo republicado, com pequenas alterações, como a introdução de “The Rise and Fall of Society”, por Frank Chodorov

O que a história pensará de nossos tempos só a história pode revelar. Porém, é um bom palpite acreditar que o coletivismo será destacado como a característica definidora do século XX. Mesmo um rápido levantamento do tipo de pensamento desenvolvido nos últimos cinqüenta anos mostra a preponderância de uma idéia central: de que a sociedade é uma entidade transcendental, algo independente e maior que a soma de suas partes, e que possui natureza e capacidades sobre-humanas. Esta sociedade opera em um campo próprio, ética e filosoficamente, e é guiada por princípios desconhecidos dos mortais. Assim, o indivíduo, a unidade da sociedade, por suas limitações, não pode julgá-la ou aplicar-lhe os mesmos critérios por que julga seu próprio pensamento e comportamento. Ele é obviamente necessário à sociedade, mas apenas como uma parte substituível dessa grande máquina. Assim, a sociedade pode até ter um interesse paternal pelos indivíduos, mas não depende deles absolutamente.

De certa forma, essa idéia tem se insinuado por quase todos os campos do conhecimento e, como costuma acontecer com as idéias, já foi institucionalizada. Talvez o exemplo mais visível esteja na orientação moderna da filosofia da educação. Muitos profissionais desta área dizem abertamente que o principal objetivo da educação não é, como se acreditava no passado, o desenvolvimento da capacidade do indivíduo de aprender, mas prepará-lo para ocupar uma posição produtiva e “feliz” na sociedade. Ele deve distanciar-se de suas inclinações para se adequar aos costumes de sua faixa etária e, posteriormente, ao meio social no qual irá viver. Ele não é um fim em si mesmo.

A jurisprudência também tem se aproximado desta mesma idéia, apontando, cada vez mais, que o comportamento humano é menos fruto da responsabilidade pessoal do que reflexo das forças sociais que atuam sobre o indivíduo; a tendência é colocar na sociedade a culpa dos crimes cometidos por seus membros. Esse é um dos princípios da sociologia, cuja popularidade crescente e elevação ao estatuto de ciência são um testemunho da influência do coletivismo em nossa época. O cientista não é mais visto como um corajoso desbravador do desconhecido em busca dos princípios da natureza, mas como um servo da sociedade, à qual deve seu treinamento e sustento. Heróis e atos heróicos têm sido rebaixados a acontecimentos acidentais do pensamento e movimento das massas. A pessoa de capacidade superior, o “capitão de indústria” empreendedor, o gênio inato não passam, todos, de ficções; não somos nada além de robôs fabricados pela sociedade. A economia é o estudo de como a sociedade se sustenta com suas próprias técnicas e normas, e não sobre como indivíduos vivem em busca da felicidade. A filosofia, ou o que quer que passe por ela, fez da verdade mesma um atributo da sociedade.

O coletivismo é mais que uma idéia. Sozinha, uma idéia não é nada mais que um brinquedo especulativo, um ídolo mental. Já que, segundo o mito, a sociedade suprapessoal é repleta de possibilidades, o melhor a ser feito é pôr o mito em ação, energizar sua virtude. O instrumento para isso é o Estado, que transborda energia política e anseia por usá-la nesta gloriosa aventura.O estatismo não é uma invenção moderna. Mesmo antes de Platão, a filosofia política já se preocupava com a natureza, a justiça e a legitimidade do Estado. Porém, enquanto os pensadores especulavam sobre o assunto, as pessoas comuns aceitaram a autoridade política como um fato com o qual se deve conviver e pararam por aí. Apenas recentemente (exceto, talvez, nos momentos em que a Igreja e o Estado se uniram, sustentando a coerção política com sanções divinas) que um grupo de pessoas tem conscientemente aceitado a tese hegeliana que diz que “o Estado é a substância geral da qual o indivíduos não são mais do que acidentes.”

É essa visão geral do Estado como uma “substância”, como uma realidade suprapessoal investida de uma competência que nenhum indivíduo pode reclamar para si, que é a característica principal do século XX.No passado, a inclinação era ver o Estado como algo com que era preciso lidar, mas que era completamente estranho. Convivia-se com o Estado da melhor forma possível, temendo-o ou admirando-o, esperando-se fazer parte dele e gozar seus privilégios ou mantê-lo distante, como algo intocável. Alguém dificilmente consideraria o Estado a própria sociedade. As pessoas tinham de sustentar o Estado – não havia como evitar os impostos – e tolerar suas intervenções como intervenções e não a base mesma da vida. O Estado também estava satisfeito com sua posição, separado e acima da sociedade.

Atualmente, estamos dispostos a destruir qualquer distinção entre Estado e sociedade, conceitual ou institucional. O Estado é a sociedade; a ordem social é, na verdade, um apêndice do establishment político, dependendo deste para a comunicação, educação, saúde, sustento e todas as coisas que remetam à “busca da felicidade”. Em tese, se nos basearmos nos livros de economia e ciência política, essa integração já é perfeita. Na operação dos assuntos humanos, embora muito se diga sobre o conceito de direitos pessoais intrínsecos, a tendência de invocar o Estado para a solução de todos os problemas da vida mostra o quanto já abandonamos a doutrina dos direitos, com a dependência de si mesmo que lhe é correlativa, e aceitamos o Estado como a realidade da sociedade. É não a teoria, mas essa integração de fato, que distingue o século XX de seus predecessores.Um indicativo de quão longe essa integração já foi é o total desaparecimento de qualquer discussão do papel do Estado enquanto Estado – discussão da qual participaram as melhores mentes dos séculos XVIII e XIX. As inadequações de um regime em particular, ou de seus componentes, estão sob constante ataque, mas não há críticas ao Estado enquanto instituição. O consenso geral é de que o Estado funcionaria perfeitamente se as “pessoas certas” estivessem em seu comando. Os críticos do New Deal não percebem que suas deficiências são inerentes a qualquer Estado, sob qualquer governo, nem que quando o establishment político obtiver força suficiente um demagogo surgirá.

A idéia de que esse aparato de poder é realmente inimigo da sociedade, de que os interesses dessas duas instituições estão em oposição, é simplesmente impensável. Quando mencionada, a idéia é desqualificada como se fosse algo “fora de moda”, o que realmente é; até a era moderna, o axioma era que o Estado, com suas tendências perniciosas intrínsecas, exigia vigilância constante.Algum fatos que ilustram bem o humor de nossos tempos me vêm à mente.A expressão comum “nós devemos a nós mesmos”, em relação aos débitos contraídos em nome do Estado, é um indicativo da tendência de removermos de nossa consciência a linha que demarca o limite entre os governantes e os governados. Essa não é apenas uma frase popular em livros de economia, mas um princípio bem aceito em muitos círculos financeiros. Para alguns banqueiros modernos, um título do governo é pelo menos tão seguro quanto a obrigação de um cidadão particular, já que o titulo é, na verdade, uma obrigação dos cidadãos de pagar impostos.

Esses banqueiros não fazem nenhuma distinção entre débitos garantidos pela produção, ou por alguma habilidade produtiva, e os débitos garantidos por alguma força política. Em última análise, um título do governo é um título sobre a produção, então qual é a diferença? Segundo esse raciocínio, os interesses da população, que estão sempre concentrados na produção de bens, são colocados no mesmo patamar que os interesses predatórios do Estado.Em muitos livros de economia, a atitude do governo de tomar empréstimos junto à população, abertamente ou através de pressão junto aos bancos para que emprestem a poupança de seus clientes, é explicada como uma transação equivalente à transferência de dinheiro de um bolso para outro da mesma calça; o cidadão empresta a si mesmo quando empresta ao governo. A lógica desse absurdo é que o efeito na economia da nação é o mesmo se o cidadão ou o governo gasta esse dinheiro. Ele simplesmente abre mão de seu direito de escolha. O fato de que o contribuinte pode não ter interesse algum nas coisas com as quais o governo gasta o seu dinheiro, que ele não contribuiria espontaneamente para esse gasto, é ignorado.

A idéia da “mesma calça” permanece na identificação da amorfa “economia nacional” com o bem-estar do indivíduo; ele é, assim, imerso na massa e perde sua personalidade.A frase “nós somos o governo” também é um exemplo desse pensamento. Seu uso e aceitação mostram o quanto o coletivismo tomou as mentes americanas neste século, chegando a abolir a tradição americana fundamental. Quando a União foi fundada, o principal medo dos americanos era de que o novo governo pudesse se tornar uma ameaça à liberdade, e os constituintes se dedicaram a aliviar esse medo. Agora crê-se que a liberdade é um prêmio que o governo concede em troca da nossa subserviência. Essa inversão foi feita com base em um truque semântico. A palavra “democracia” é a chave desse truque.

Quando alguém procura o significado da palavra, vê que não é exatamente uma forma de governo claramente definida, mas uma regra para “atitudes sociais”. Mas o que é uma “atitude social”? Colocando de lado todo o palavrório que pudesse tentar explicar o conceito, aparentemente, ele não é nada mais que o bom e velho majoritarismo: o que cinqüenta e um por cento da população considerarem certo está certo, e a minoria estará necessariamente errada. É só um novo nome para a velha ficção da “vontade geral”. Não há espaço nesse conceito para a doutrina dos direitos inatos; o único direito disponível para a minoria, mesmo a minoria de uma só pessoa, é a conformidade com a “atitude social” dominante.Se “nós somos o governo”, então o homem que se encontra na prisão deve culpar a si mesmo por sua condição, e o homem que obtém toda dedução de impostos que a lei permite também está se prejudicando. Enquanto isso pode parecer um inacreditável reductio ad absurdum, o fato é que muitos dos que foram prejudicados por essa lógica têm se conformado com ela.

Boa parte da população desse país era de fugitivos do regime de alistamento compulsório – que era chamado de “czarismo” há duas ou três gerações e considerado a forma mais básica de servidão involuntária. Agora já passamos a aceitar que um exército com alistamento compulsório é, na verdade, um exército democrático, composto por homens que se adequaram à “atitude social” da época. É assim que as pessoas normalmente alistadas se consolam, quando forçadas a interromper seu sonho de ter uma carreira. A aceitação da obrigatoriedade do serviço militar atingiu o ponto da resignação insconsciente da personalidade. O indivíduo, como um indivíduo, simplesmente não existe; ele faz parte da massa.Esse é o ápice do estatismo.

É uma forma de pensar que não reconhece nenhum ego, exceto o do coletivo. Por analogia, devemos citar a prática pagã do sacrifício humano: quando os deuses pediam, quando o curandeiro insistia que essa era uma condição para fazer o clã prosperar, cabia ao indivíduo se jogar no fogo sacrificial. De certa forma, o estatismo é um paganismo, o culto a um ídolo, algo criado pelos homens. Sua base é puro dogma. Como todos os dogmas, está sujeito a interpretações e racionalizações, tendo cada um deles seu pequeno grupo de seguidores. Porém, não importa se alguém se vê como comunista, socialista, apreciador da política do New Deal, ou apenas “democrata”: cada uma dessas opções vêm da premissa de que o indivíduo deva ser apenas um servo deste ídolo que é a 'massa'. E que sua vontade seja feita.Ainda existem almas fortes, mesmo neste século vinte.

Há alguns que crêem, na privacidade de sua pessoa, que o coletivismo é a negação de uma ordem mais elevada. Há não conformistas que rejeitam a noção hegeliana de que “o Estado encarna a idéia divina na Terra”. Há alguns que crêem firmemente que somente o homem é feito à imagem de Deus. À medida em que esses remanescentes – esses indivíduos – ganham entendimento e aprimoram suas explicações, o mito de que a felicidade deve ser encontrada sob a autoridade coletiva esvaecerá na luz da liberdade.

Tradução por Magno Karl, no Ordem Livre.