«Liberté! Sauvons la liberté! La liberté sauvera le reste!» Victor Hugo.

23/08/2007

Sobre Fazer Algo Quanto a Isso

Um jovem precisa ter uma "causa". O utopismo é uma doença tão natural para o garoto em idade de faculdade quanto o sarampo era na sua infância. Minha doença foi o anarquismo. Eu não sei se peguei de Kropotkin e Proudhon porque eles me forneceram argumentos com os quais refutar os socialistas do campus ou porque eles escreveram tanto sobre individualismo, o que permaneceu arraigado na minha formação. De qualquer forma, eu experimentei meu caso de amor com o anarquismo, que terminou somente quando eu pesquisei sobre as doutrinas econômicas das várias escolas do anarquismo então existentes. Todas elas tinham uma visão sombria da propriedade privada, sem a qual, parecia-me já naquela época, o individualismo não fazia sentido. Se um homem não pode aproveitar os frutos de seu trabalho, sem permissão ou limitação, ele é escravo daquele que se apropria de sua propriedade; um escravo não tem direitos de propriedade. Além disso, eu pensava, a abolição da propriedade privada poderia ser conseguida somente com a intervenção de um Estado todo-poderoso, o qual os anarquistas estavam tão inclinados a destruir.

Essa incongruência inibiu minha curta paixão pelo anarquismo.Bakunin me perturbava especialmente. Sua urgência em "fazer algo quanto a isso" com bombas não me apeteceu, não porque eu fosse inclinado ao pacifismo, mas porque eu percebia que nenhum bem poderia advir da violência. O arremessador de bombas pode conseguir alguma mudança no governo com sua tática, mas poderia ele resistir à tentação de arremessar bombas? Ele não poderia usá-las para adquirir e exercer o poder por sua própria conta? Logo cedo eu desenvolvi um desgosto em relação a "fazer algo quanto a isso" — isto é, em relação à reorientação organizada e forçosa da sociedade rumo a uma imagem preferida por mim. Eu nunca fui um membro de carteirinha de nenhuma organização, me revolto com qualquer tentativa de canalizar meu pensamento e me oponho constitucionalmente à ação política.Eu gostaria, é claro, de ver a sociedade organizada de forma que o indivíduo fosse livre para seguir a sua própria "busca pela felicidade" como ele achasse apropriado e de acordo com suas próprias habilidades. Porque eu assumo que o indivíduo ao nascer é dotado do direito de fazer isso. Eu não posso negar esse direito aos outros homens sem implicar que eu mesmo o tenho, e isso eu não admitirei.

Eu reclamo para mim mesmo a prerrogativa de ficar bêbado e dormir jogado na sarjeta, com a condição, claro, de que eu não interfira no direito de meu vizinho de ir à ópera; essa é a minha forma (e a dele) de buscar a felicidade. Como pode uma terceira pessoa saber que ficar bêbado ou ir à ópera não é "bom" para qualquer um de nós? Ela, ou a sociedade, ou uma maioria, pode dizer que nós, meu vizinho e eu, temos os valores "errados" e tentar nos dizer isso, mas a imposição da força para nos fazer mudar de valores é injustificável; esse uso da coerção advém de uma presunção de onisciência, a qual não é uma qualidade humana. O melhor que a sociedade pode fazer nessas circunstâncias é se assegurar de que a forma pela qual o indivíduo busca a felicidade não interfira com a dos outros — e então nos deixar todos sozinhos.Essa é a forma como eu gostaria de ver a sociedade da qual sou parte organizada; mas ela não está organizada dessa forma e eu considero suas regras muito desagradáveis. Em primeiro lugar, ela instituiu um sistema de taxação pelo qual um terço de nossas rendas é confiscado; o tamanho desse confisco é a limitação ou a circunscrição da busca pela felicidade, pois não se pode gastar (em uísque ou ópera) o que não se tem. E então o gasto dessa vasta quantidade de dinheiro torna necessária uma burocracia de grandes proporções, e essa monstruosa burocracia, para justificar sua existência, dá grandes presentes a grupos favorecidos, que precisam se submeter a certas regulações e controles para consegui-los. Nossa busca pela felicidade é, assim, limitada — pelo nosso próprio "bem", para ser claro.Isso eu considero mau, perverso, infame e tudo o mais.

Assim, eu me proponho a "fazer algo quanto a isso". Mas como? Obviamente eu não posso fazer qualquer coisa para mudar nosso sistema por mim mesmo, embora eu possa, se eu pensar dessa forma, me recusar a pagar impostos e sofrer as conseqüências; as conseqüências são uma maior interferência em minha busca pela felicidade. Meu único recurso é me associar com pessoas que pensam de forma similar e ter esperanças de que nós possamos de alguma forma remover de nossos estatutos as leis de impostos. Para fazer isso, temos que ter um número considerável de mentes determinadas a fazer isso. Nós temos que vasculhar as matas em busca de convertidos para nossa causa, pois a maioria das pessoas está preocupada em viver da melhor forma aqui e agora do que em reescrever as regras da ordem social. Somente comparativamente poucos estão interessados numa reforma. Mas, com uma árdua busca e através da educação nós podemos reunir um bom número, suficiente para fazer sentir sua influência, que esteja convencido de que nossa idéia é sincera e que desejem aplicá-la ou morrer por ela. Entretanto, a estratégia tem que ser considerada. O padrão histórico para se fazer algo quanto a isso é confrontar o poder político com uma oposição organizada, a qual, novamente, é poder político. Embora a vingança seja considerada por essa direta colisão de forças, a história mostra que os princípios permanecem exatamente como eram antes da colisão.

E isso ocorre caso o conflito tome a forma de uma revolução violenta ou de uma batalha nas urnas. A razão desse resultado invariável é encontrado na técnica necessária da ação política; precisa haver um líder, pois sem ele um exército não passa de um aglomerado que se dispersa facilmente. Eu nomeio a mim mesmo para o trabalho, não por causa de quaisquer qualificações particulares que eu possa ter, mas porque de minha devoção à idéia me habilita a essa distinção. Bem, pois, sob a minha liderança nós conseguimos uma votação considerável — para mim e presumivelmente para minha idéia.Mas, embora até agora eu tenha sido um professor, um propagandista e um organizador, eu sou agora um legislador confrontado com o problema prático de fazer as leis. O parlamentarismo bloqueia meu caminho. E eu encontro condições e interesses que fazem com que a mudança da lei seja difícil. Eu vejo, por exemplo, que podersos grupos têm interesses na taxação; os veteranos são por ela, também o são os fazendeiros que vivem através de subsídios, da mesma forma que os industrialistas cujas operações estão atreladas às receitas governamentais, e os donos de papéis do governo são os mais vocais na oposição à minha idéia. Logo vejo que a política é a arte do possível e é simplesmente impossível mudar a estrutura de impostos do país. Assim, eu penso em concessões, consolando minha consciência com o pensamento de que as concessões são meramente temporárias e que quando as condições forem propícias, a taxação como um todo será abolida.

Além disso, eu sou humano e sucumbo à tentação de perpetuar minha posição de proeminência; os honorários do cargo são os mais sedutores e eu concordo em fazer concessões em troca da promessa de suporte da oposição.O caso de Robespierre vem à mente. Ele era, como todos sabem, um estudante e discípulo de Rousseau que se opunha completamente à pena capital. Contudo, quando chegou à hora de votar sobre a questão do regicídio, Robespierre foi a favor, acompanhando seu voto com um longo discurso explicativo no qual ele usava outra aberração de Rousseau — a Vontade Geral — para se justificar. A expediência o impeliu a virar Rousseau do avesso.As expediências da política combinadas com as fragilidades dos líderes políticos descartam a possibilidade de usar o método político para colocar o princípio dentro da lei. A ordem social precisa cuidar de si mesma; a política e a lei seguirão o que ditar a sociedade, uma vez que a sociedade saiba o que quer e aja como se quisesse. Portanto, para "fazer algo quanto a isso" é necessário se concentrar na sociedade e desconsiderar severamente a política; o que significa educação e mais educação e ignorar os políticos totalmente.

Como esse curso pode ocasionar uma genuína reforma se torna evidente quando nós consideramos a composição da máquina política conhecida como Estado.A fraqueza do Estado está no fato de que ele não é nada além de um agregado de humanos; sua força é derivada da ignorância geral desse truísmo. Desde muito tempo a cobertura dessa vulnerabilidade tem ocupado os talentos do político; todas as formas de argumentos foram aduzidas para dar ao Estado um caráter sobrehumano, e rituais sem fim foram inventados para dar a essa ficção a verossimilhança da realidade. A divindade com a qual o rei considerava necessário investir-se foi tomada pelo mítico cinqüenta e um por cento do eleitorado, que, por sua vez, dão ordens àqueles que os governam. Para ajudar no processo de canonização, os personagens nos quais o poder reside se separaram através de artifícios como títulos grandiloqüentes, trajes distintivos e medalhas hierárquicas. Os modos da língua e do comportamento — chamados de protocolo — enfatizam essa separação. No entanto, o fato da mortalidade não pode ser negado e a continuidade do poder político é fabricada por meio de símbolos que inspiram admiração, tais como bandeiras, tronos, monumentos, selos e laços; essas coisas não morrem.

Por meio de litanias a alma é sugada para dentro desse novilho de ouro e a filosofia política o unge como uma "pessoa metafísica".Luís XIV foi bastante literal quando ele disse "L'état c'est moi". O Estado é uma pessoa, ou várias pessoas, que exercem a força, ou a ameaça dela, para fazer com quem os outros façam o que de outra forma não fariam, ou para se absterem de satisfazer um desejo. A substância do Estado é o poder político, e o poder político é coerção exercida por pessoas sobre pessoas; o caráter sobrehumano assumido pelo Estado tem o propósito de esconder esse fato e induzir a subserviência. A força do Estado é sansônica e pode ser cortada pelo reconhecimento popular do fato de que só existe um Tom, um Dick e um Harry.Os anarquistas dizem que o Estado é perverso. Eles estão errados. O Estado são perversos. Não é um sistema que cria privilégios, são várias pessoas moralmente responsáveis que fazem isso. Um robô não pode declarar guerra e funcionários gerais não podem conduzir uma; o instrumento motivador é um homem chamado rei ou presidente, um homem chamado legislador, um homem chamado general. Identificando assim o comportamento político com as pessoas, nós evitamos a transferência da culpa para uma ficção amoral; nós colocamos a responsabilidade aonde ela pertence.

Tendo estabelecido em nossas mentes o fato de que o Estado é formado por um número de pessoas que não podem fazer bem algum, nós procedemos a tratá-las de acordo. Você não se curva perante um preguiçoso comum; por que você deveria reverenciar um burocrata? Se um político importante aluga um salão para fazer um discurso, fique longe; a ausência da audiência dará a ele uma dimensão de sua irrelevância. Os discursos e afirmações escritas de uma figura política são feitos para impressioná-lo com a importância dele, e se você não escutá-lo ou lê-lo você não será influenciado e ele desistirá. É o aplauso, a adulação que concedemos aos personagens políticos que registra a nossa consideração pelo poder que eles carregam; a deflação desse poder se dá na proporção de nossa desconsideração desses personagens. Sem uma platéia animada não há parada.O ostracismo social sozinho pode trazer até mesmo as maiores falsidades políticas ao seu nível moral. Aqueles cujo respeito próprio não decresceu até o ponto do desaparecimento sairão do campo político e encontrarão trabalhos honestos, enquanto que os degenerados que permanecerem terão que se adaptar ao que eles conseguirem pegar do público relutante. Abaixo da alta-cúpula política estão milhões de empregados que merecem mais piedade do que desprezo; você considera difícil desprezar o homem cuja incompetência o força à sarjeta pública.

Contudo, se você assumir a atitude "pobre John" em relação a ele, você o lembra continuamente de um padrão mais alto e pode salvá-lo da própria degeneração.Um prédio do governo você considera como um mausoléu; você entra neles somente sob ameaça e não se diminui a ponto de admirar suas estátuas vivas ou mortas. As estrelas nos ombros do general significam que o homem pode ter sido um membro útil da sociedade; você tem pena do garoto cujo uniforme identifica sua servidão. O trono sobre o qual o juiz se senta eleva o corpo mas rebaixa o homem, e uma sala de jurados é um lugar onde escravos a três-dólares-por-dia executam as leis da escravidão. Você honra o evasor de impostos e respeita o homem honorável o suficiente para desafiar a lei.O poder social reside em todo indivíduo. Assim como você coloca a responsabilidade social no comportamento político, você precisa assumir responsabilidade pessoal pelo comportamento social. Você despreza o legislador Brown não porque ele violou um princípio da Tax Reform Society [N.T.: algo como "Sociedade pela Reforma do Sistema Tributário"], à qual você pertence, mas porque seu voto pela arrecadação de impostos é, em sua estimativa, um ato de roubo. Não é uma sociedade de paz que julga o fazedor de guerras, é o pacifista individual.

Todos os valores são pessoais. A boa sociedade que você visiona pelo declínio do Estado é uma sociedade na qual você é parte integral; sua campanha é, portanto, uma obrigação pessoal.Você é inefetivo sozinho? Você precisa de uma organização para lhe ajudar? Somente indivíduos pensam, sentem e agem; a organização serve apenas como uma máscara para aqueles incapazes de pensar ou que não desejam agir de acordo com suas próprias convicções. No final, toda organização vicia o ideal que primeiro atraiu seus membros, e quanto mais numerosos os associados, mais certo esse resultado; isso ocorre porque o ideal organizacional é uma concessão dos valores privados e, num esforço para encontrar uma concessão possível, o denominador comum mais baixo, enquanto o número de associados cresce, se torna o ideal. Quando você fala por você mesmo, você é forte. A potência do poder social é proporcional ao número daqueles de mentalidade parecida, mas essa é uma questão de educação, não de organização.Portanto, vamos tentar o ostracismo social da política e dos políticos. Deve funcionar. A reforma através da política somente fortalece o Estado.

» Esta é a tradução do Capítulo X da autobiografia de Frank Chodorov, Out of Step (1962). [LibertyZine].

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